A arte como meio de comunicação dos deuses

A arte como meio de comunicação dos deuses
Discussões & Reflexões

A arte como meio de comunicação dos deuses

Os Beatles cantando em rede nacional nos EUA pela primeira vez, o festival de música de Woodstock, o surgimento do rock, o cinema de Hollywood. Apesar de todos esses elementos serem peças fundamentais para entender a cultura pop que chegou ao século 21, nenhuma delas é a pedra fundamental. Uma característica comum desta criação artística de hoje pode ser mapeada em um período ainda anterior, segundo o jornalista Alex Antunes. Ideias já testadas em algum outro lugar são recicladas para criar um produto novo. Na arte, esta máxima é comum. E segunda Antunes, o nazismo foi um dos fortes agentes do século passado a fazer isso. “A suástica, que é um sí­mbolo indiano, foi virado ao contrário pelos nazistas”, exemplifica o curador do módulo “A volta do sagrado: superando a crise”.

Para o jornalista, as ideias de comunicação do nazismo encontram paralelo até mesmo no comunismo. “Todo o projeto de comunicação deles já tinha elementos pop. De certas formas, algumas ideias do Hitler devem ter sido extraídas do projeto de comunicação comunista da época do Stalin. A maneira de instrumentalizar cultura para transmitir determinadas mensagens, uma ruptura com a alta cultura e um dirigismo da cultura para a mensagem. Não é uma relação de mercado, mas a questão de cultura podia ser misturada com a comunicação de massa.”

Enquanto o ditador da Alemanha lutava contra a arte que surgia, batizada preconceituosamente pelos nazistas de “degenerada”, do outro lado do Atlântico, o governo americano, país que viraria um dos maiores exportadores de cultura pop nas décadas seguintes, dava apoio a Jackson Polock. O pintor foi um dos maiores expoentes dessa arte combatida por Hitler, com seus quadros abstratos carregados de tintas. Alex Antunes vê com certa ironia esse patrocínio americano a um artista como Polock. “Foi uma espécie de negação da ideia do realismo socialista. O Polock estava sendo patrocinado pelos EUA para reduzir uma ruptura de linguagem nas artes plásticas, o que é uma ideia estranhíssima, porque de fato ele estava conduzindo algum tipo de profunda revisão — senão revolução — na linguagem das artes plásticas.”

A Alemanha de Hitler temia as expressões que estavam surgindo na vanguarda europeia, como o surrealismo, o dadá, e deu força a uma forma de arte mais baseada no classicismo. Antunes aponta estas formas de arte combatidas pelos nazistas como precursoras da cultura pop. Até mesmo a revolução que nós acompanhamos pela tevê também é fruto de experiências que remontam ao começo do século passado. “Você vê que a cultura pop, da segunda metade do século 20, está muito enraizada na arte de vanguarda da primeira metade do século. Todas as senhas e códigos estão lá. A molecada que assistiu a revolução do clipe não fazia a menor ideia que estava assistindo um tipo de edição que de alguma maneira era herdeira dos conceitos russos da década de 20 do século passado, como o diretor de cinema Eisenstein, que trabalhou muito com a questão do que ele chamava de montagem conceitual. O que o cineasta Dziga Vertov fez em “O Homem da Câmara de Filmar’ pode ser considerado um pré-clipe, em clima de edição.”

Com tanta apropriação de imagens, símbolos e ideologias, Antunes questiona se as pessoas não trazem para si também um pouco desse arquétipo. “A sensação que eu tenho é que a cultura pop, por forças dessas manobras todas, inclusive manobras de mercado, está impregnada dessas presenças. Em uma discussão mais jungiana das coisas, quando você usurpa uma imagem, um símbolo, uma música, um canto. Você pode rastrear muito bem o arquétipo das coisas que faziam sucesso no mercado americano, sejam reais ou fictícios.”

Alex Antunes aproveita e faz um breve levantamento de alguns nomes de personagens de nosso mundo pop. “O Superman tem a ver com a força do tarô. Qual o arquétipo da Madonna? A carreira dela é maravilhosa desse ponto de vista, de demonstração de elementos de cultura, se reinventando, quase um oposto do Michael Jackson, que foi devorado pela sua fantasia. O Roman Polanski, que vai para os EUA e transforma o filme de terror para em seguida ser engolfado por uma situação absolutamente trágica, que é o assassinato de sua mulher pela gangue do Charles Manson. O Jimmy Page do Led Zeppelin, que comprou a casa do Alester Crowley.”

O místico inglês que mexeu com a cabeça do guitarrista do Led Zeppelin com suas ideias sobre ocultismo ainda hoje influencia o rock. No Brasil, dois seguidores de Crowley foram Paulo Coelho e Raul Seixas, que criaram o conceito de sociedade alternativa a partir de textos do mago. Mas, segundo Antunes, a tradução foi mais adaptada que levada ao pé da letra. “Raul Seixas e Paulo Coelho demonstraram que era possível fazer um projeto de comunicação de escala nacional fazendo as coisas acontecer usando os preceitos de Alester Crowley. Todos os slongas e frases chaves são baseadas, com um pouco de distorção, em textos do Crowley. ‘Faça o que tu queres, pois é tudo da lei’, por exemplo. A tradução mais precisa é ‘faça o que tu queres, essa é a lei’. Não é um vale-tudo, é assuma a responsabilidade pelo que você faz, porque é isso que dá significado para sua vida. Um pouco mais exigente do que a tradução deles”, brinca o jornalista.

Foi essa relação do oculto em plena época científica que levou Antunes a criar seu módulo. O curador passou a questionar se não haveria uma espécie de comunicação inconsciente entre o divino, o mágico e o nosso mundo real que estaria se dando principalmente no consumo de arte. “Apesar de todo nosso cientificismo branco, nesse plano de cultura, particularmente na cultura pop, não estaríamos atraindo para esse plano todos os arquétipo, espíritos, deidades de todas as épocas, crenças e panteões? Eles estão lá, se comunicando com a gente. E a molecada consome isso avidamente, seja satanismo, sejam as fadinhas. Todas essas propostas mágicas e esses universos misteriosos são avidamente consumidos, utilizados reciclados na cultura pop.”, teoriza Antunes.

O módulo, que passou por São Paulo e Campinas, contou com palestras de Eugênio Bucci, Max Sandor, Lobão, Jorge Coli e Nilton Bonder. Arte, ciência e misticismo. Elementos com os quais convivemos diariamente e cujas ligações nem sempre são claras. Para entender um pouco essa relação, veja as oito palestras na íntegra.